sábado, 24 de fevereiro de 2007

Um susto, a gagueira e a auto-cura


Corria o ano de 1956 ou 57. Mês de junho, festas de São João. No salão paroquial, ainda de madeira, então nos fundos da Igreja Matriz São Luís, uma festa-quermesse. Na parte de fora diversas barracas para entretenimento da garotada, como tiro-ao-alvo, banca de pesca, lance com argola, "cadeia", de onde só se saia depois de pagar uns trocados, essas coisas, entre outras.
Dentro e fora do salão, na maioria, um incessante vaivém de guris e gurias, moças e rapazes. Estes já na fase de trocarem "telegramas" apaixonados, paqueras à distância, dedicarem músicas às suas musas alvo, com dedicatórias anunciadas pelos alto-falante, do tipo: "Fulano, com muito amor e carinho, dedica a próxima faixa musical à beltrana", ou "Fulano, com admiração, dedica a próxima faixa musical á moça que está na mesa tal, com blusa rosa e saia zul", e coisas e tais.

Na banda externa, um pouco afastado do borburinho de gente, jovens faziam espocar a suas bombinhas, cujo tamanho era uma pouco mais do que palito de fósforos. Mesmo assim o estampido causava um certo impacto. Era uma grande e agradável vibração juvenil.

Meus irmãos, Osmar (o mais velho) e Bruno (o mais moço) e eu, na casa entre os 10 e 15 anos. No horário pré-estabeleicdo pela nossa dedicada mãe, decidimos voltar prá casa. Até que os jovens da época eram relativamente obedientes, mas não menos peraltas.
Assim, descemos a escadaria da Igreja Matriz, cruzamos pelo centro da Praça da Bandeira, mais conhecida como Praça da Igreja, passamos em frente à Casa Vargas, onde minha irmã mais velha trabalhava, e fomos em direção à rua João Pessoa. Dali tomamos o sentido Norte em direção à rua Domingos Martins. Íamos faceiros, cantarolando as músicas que o alto-falante da quermesse nos proporcionava.

Meus irmãos já haviam liquidado com todas as suas bombinhas, enquanto eu ainda guardava algumas poucas. Já na esquina da Victor Barreto com a rua Muck, meu irmão Osmar teve uma inspiração repentina.

A casa dos Muck, exatamente na esquina, estava com uma das janelas para a Victor Barreto aberta. E alí parados, ele perguntou se eu ainda tinha alguma bombinha. Respondi positivamente. Então ele disse quase ordenando: me dá uma aqui que eu vou jogar prá dentro da janela. Não, respondi, a bombinha é minha e eu é que vou jogar. Discutímos por alguns segundos quem lançaria o explosivo. Já tinha tirado a dita bombinha do bolso junto com uma caixa de fósforo. E num repente, enquanto meu irmão tentava me convencer de entregar-lhe a bomba, risquei na caixa e a joguei. Mesmo pequenina, mas com a casa totalmente fechada, o efeito do estrondo foi bem maior. Posso imaginar, hoje, o susto, ainda mais se estavam tirando uma cesta.

Saímos em desabalada carreira em direção à Domingos Martins, na expectativa de não sermos vistos. Na Estação do Trem (hoje sede da Fundação Cultural), escondidos, nos acomodamos num banco por alguns minutos esperando passar um tempo e podermos ir prá casa sem sermos vistos ou importunados depois do feito. Assim, caminhando tranqüilos pelos trilhos, chegamos à rua Domingos Martins. De repente e não mais do que de repente, exatamente sobre os trilhos, na passagem de nível que havia ali, estaciona uma camioneta. Ficamos os três perfilados e tesos. O homem da camioneta, para nós desconhecido, em tom grave e determinado, disse:
- "Entre os três na camioneta que eu vou levá vocês prá delegacia".

Sem, muito pestanejar, meu irmãos mais novo, no ensejo de livrar-se da bronca, não titubeou e logo me dedurou: "Foi ele", disse apontando prá mim, enquanto o Osmar, o mais velho, já havia saido em louca disparada pela rua Guilherme Schel, ainda de chão batido e cercada de matagal, para ter com a minha irmã na Casa Vargas. E alí fiquei eu sozinho com o desconhecido decidido, dando a ordem:
- "Embarca aqui que eu vou te levá prá delegacia".

Naquele tempo se tinha respeito e medo da polícia. Um puta medo. Ter que ir prá delegacia, então nem falar. E pior: Qual a explicação em casa? Uma surra com vara de pereira enozada na certa, além de um provável castigo de não poder sair de casa por bom tempo e menos ir jogar futebol com a turma da rua. Isso tudo era inadmissível. Foram frações de segundos.

Delegacia, polícia ... deu pavor. E que pavor. Foram, daí, mais alguns intermináveis segundos pensando como sair daquela situação. Então resolvi, como se fosse entrar na cabine da camioneta, atravessei pela sua frente, e me meti em louca corrida pela calçada da Domingos Martins, também de chão batido. Havia chovido e a rua, além de estreita estava molhada, enlameada. Seria bastante difícil ele fazer o retorno com a camioneta naquelas alturas e continuar a perseguição. Assim, dei meia volta, retomei para a Victor Barreto, ainda pela calçada, quando de repente ouvi a voz de um homem, que se quer olhei prá ver quem era, que disse:
- "Vem cá guri, vem cá que eu te salvo".

Sem parar para refletir, pensei: "Enquanto eu corro meu pai tem filho". E ainda pela calçada, e desesperado, corri, como se numa disputa de atletismo, uma três ou quatro quadras em direção à rua Mathias Velho, quebrei a esquina e por esta, mais uma duas quadras, até alcançar a rua Dr. Barcelos. Olhei prá trás e não vi mais a camioneta. Fiz uma parada. O coração parecia saltar pela boca. Sentia uma certa dificuldade de respirar. Procurei aspirar e expirar fundo umas duas ou três vezes para retomar o fôlego, e então continuei, porém em marcha mais lenta. Dali até a Frederico Guilhjerme Ludwig outras duas quadras e mais uma para chegar em casa.

Entrei pelos fundos, hiper ofegante. O coração num tic-tac incontrolável. Dei de cara com a minha saudosa e preocupada mãe, que logo me inqueriu com ar de assustada:
- O que houve?.
- Nada, respondi, brincadeira com os amigos.

Fui direto prô quarto e aí é que fui me dar por conta que estava literalmente todo urinado. Tratei logo de trocar a roupa domingueira pela do dia-a-dia. Respeirei fundo mais algumas vezes, fiz ares de que estava tudo normal, e avisei a mãe que iria brincar com os amigos. Até aí, aparentemente, havia transcorrido tudo normal, apesar do brutal susto. Parecia que tudo estava resolvido.

No dia seguinte, depois de acordar, fazer a higiene matinal e tomar o café, comecei a perceber que tinha alguma dificuldade para falar. Me dei por conta, ao conversar com alguns amigos, que estava começando a hesitar quando falava. Estava, enfim, gaguejando. Dai prá frente, como os colegas do Banagrimer (hoje Unibanco) me chamavam, virei um inimitável, mas nada invejável, "metralha".

Nas rodas com amigos e amigas, nos bailes, no trabalho no banco (e lá exatamente lidava com o público), em todos os lugares, cada vez mais tartamudo, havia percebido que eu "tropeçava" ou estancava, geralmente, nas palavras que começavam com "C", "P" e "Q". E disso me dera conta uns bons anos depois. A tartamudez durou uns 12 ou 13 anos. Até o dia que, lendo uma das edições da Seleção Reader´s Digest, me deparei com um artigo, se não me falha a memória, intitulado "Como curar a gagueira de fundo emocional".

Li com total concentração. O artigo ensinava como superar a gagueira que havia adquirido através de um susto. Um grande e nefasto susto. O articulista ensinava que, nos casos de gagueira provocada por questão de fundo emocional, susto ou coisas que mexessem com o sistema nervoso, era possível curar procurando falar pau-sa-da-men-te, sem pressa e sem nervosismo. E assim passei a exercitar, procurando dominar o meu emocional e o meu sistema nervoso. Isso levou algum tempo. O suficiente para me acostumar a falar pausado e, assim, superar o problema da gagueira.

Lembro como era difícil e desagradável estar num baile, por exemplo, tirar uma menina prá dançar, num tempo que era muito difícil dançar de rosto colado. Dava graças a "deus" quando a menina permitia, assim eu, sem que ela percebesse, ensaiava como eu devia iniciar uma frase ou um diálogo, sem ter que usar palavras que começassem com "C", "P" ou "Q". Exemplo: Qual é teu nome? Como tu vais fazer? Por quê não me chamaste? Que tal a música? Só não gaguejava quando cantava, disso eu me dera conta, e eu mesmo achava aquilo engraçado, ao mesmo tempo que estranho. Prá mim, difícil de entender. Mas, enfim ... era assim que a coisa funcionava.

E essa situação eu não vivia só quando ia aos bailes, mas no trabalho, nas rodas com os amiguinhos, etc. Como disse, no banco o meu apelido já era "Metralha" tal a "qualidade com que falava o tartamudez". Não era nada fácil, mas tinha que suportar. Bem, isso só até o dia em que li o artigo publicado na Seleção Reader´s Digest. A partir daí, exercitei, determinadamente, o que o artigo ensinava e acabei conseguindo a auto-cura, felizmente.

Casei, pela primeira vez, aos 26 anos. E já havia abandonado completamente o "time dos gagos", graças, repito, a um artigo da Seleção Reader´s Digest, isso já por volta de 1968/69, e a minha determinada disposição de vencer o problema que surgira a partir de um tremendo susto.

Escrevo essa experiência com o intuito de colaborar com quem se defronta com problema semelhante, apesar de psiquiatras e psicólogas, no site Abra Gagueira - Associação Brasileira de Gagueira, afirmarem que "UMA PESSOA NÃO COMEÇA A GAGUEJAR DEPOIS DE LEVAR UM SUSTO". E justificam afirmativamente, dizendo: "Isso é um mito. Com os estudos científicos atuais é possível afirmar que a gagueira é causada por fatores genéticos, orgânicos, sociais e psicológicos". Uma assertiva que me parece ousadamente pedante, dado a factualidade da minha experiência.

Enviei um e-mail (abragagueira@abragagueira.org.br), contando a minha história e como cheguei à auto-cura. Na medicina tem-se notícias de inúmeros casos dados por insolúveis pela própria ciência médica, e que por outras formas que não científicas alcançaram a desejada e acreditada solução. E este, por exemplo, é um caso de to be or not to be. Is the question!

Como são profissionais que têm diplomas de especialistas, com certeza, jamais irão dar crédito a um leigo ... mas com experiência própria e resultados incontestáveis.

Não há nisso nenhuma vanglória, se não a da cura ou superação, e, além disso, a transmissão de uma experiência de quem acreditou no ensinamento de um artigo de revista, ainda que não de cunho científico e aparentemente despretencioso, cujos resultados, ainda que por forma empírica, poderão servir de modelo.

Ou seja, um ex-gago que conseguiu a AUTO-CURA.

Um comentário:

Leonardo Macieira disse...

Xico,

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